Por: Kátia Maria Nunes Campos

Décadas atrás, por algum motivo que desconheço, resolveram fazer a crucificação ao vivo, por atores, em plena Praça Tiradentes. Para Cristo, elegeram o “seu” Miguel como o mais adequado, por ser magro e alto, com um baita nariz, e talvez por ser ele próximo de um arquétipo imaginário e algo inocente do pouco conhecido biotipo da etnia judaica. A grande maioria nunca tinha conhecido um autêntico judeu, a não ser “seu” Isaac Babsky, antigo morador da rua Alvarenga, grandão, rosado e rechonchudo. Não preenchia o figurino e tinham que se contentar com um cristão mesmo.

Adornaram ‘seu” Miguel com uma barba e belos e longos cachos negros e penduraram o pobre na enorme cruz levantada em frente ao Museu. Lá estava ele, com a cabeleira agitada pelo vento frio da noite, de tanga e torso nu, com os braços e pés presos por cordas. Sofrimento em que nem Jesus acharia defeito, se experimentasse o vento gelado e noturno que varre essa cidade, desde sempre. O “nosso” Jesus batia os dentes, na friagem de uma noite daquelas.

Escondido nos esvoaçantes panos brancos, instalaram um potente microfone, para transmitir em alto e bom som, as palavras finais de Jesus, repetindo o conhecido versículo “em suas mãos entrego meu espírito.” Alto falantes espalhados por todos os cantos garantiam que ninguém perderia um gemido que fosse. E, lá pelas tantas, ligaram o microfone para a tão aguardada fala, que Miguel repetiu com voz grave e solene.

Até aí, tudo transcorrera conforme o roteiro esperado, e chegou a hora de libertar o coitado de seu suplicio. Encostaram as escadas e dois furricocos começaram a subir os primeiros degraus. Neste ponto, o peso adicional desequilibrou a pesada cruz, que ameaçou tombar, perigosamente. Com o microfone ainda ligado. e ‘seu’ Miguel começou a gritar desesperado, com toda a multidão ouvindo claramente:

“Vou cair… Pelo amor de Deus, segura direito essa merda aí embaixo, senão eu vou me estabacar nas pedras”. 

E a comoção gerada pela morte dolorosa de Jesus desapareceu repentinamente de todas almas, substituída por estrondosa gargalhada da multidão. A banda atacou, desceram o Cristo choroso, já com o microfone desligado. Não me lembro o que veio depois. Meu pai adorava este caso e sempre contava esse episódio, rachando o bico com as lembranças.

Conta-se que, dias depois disso, “seu” Miguel não teve sossego. Os amigos caçoavam dele o tempo todo. Um deles lhe perguntou o que sentiu com o acontecido, já que seria o segundo Jesus a morrer crucificado de que se tinha notícia.

“Pois fique sabendo que eu ia morrer pior do que Jesus. Ele morreu na cruz e pronto. Eu, por outro lado, ia morrer crucificado e esmagado debaixo da minha própria cruz, com a cabeça e as costelas esbagaçadas nos paralelepípedos. E ele ressuscitou e eu, nem o capeta me levantava mais. Tava morto, mortinho. Fui mais até mais “cristo” do que o próprio Jesus”.

Pois é, não deixa de ser um argumento forte. Salve “seu” Miguel, boa alma que se foi, liberto do peso de uma cruz que não mereceu, em sua vida digna entre nós. Que esteja feliz, onde estiver.

E toca a procissão.

Por: Kátia Maria Nunes Campos
Foto: Descendimento da Cruz/ Marcelino de Castro/diário de Ouro Preto