“Enquanto dormimos/ a dor que não se dissipa/ cai gota a gota sobre nosso coração/ até que, em meio ao nosso desespero/ e contra nossa vontade/ apenas pela graça de Deus/ vem a sabedoria.”

Poema escrito no século V a.C. pelo poeta grego Ésquilo

Ao ouvir Deixa a Viola me Levar (Selo Sesc), álbum que homenageia a obra do violeiro Mestre Manelim, lá do Sertão do Urucuia, em Minas Gerais, lembrei-me do poema de Ésquilo. Metido que só, lá vai! Enquanto dormimos, alguns agem. Enquanto dormimos, a história é preservada ou esquecida. Enquanto dormimos, mais um gênio corre o risco de parecer que nunca existiu. Enquanto dormimos, alguns fazem o que nós apenas sonhamos enquanto dormimos.

Não digo isso porque já estivesse pensando em Manelim, a quem ainda não conhecia, posto que eu “dormia”. Digo isso pensando nos pesquisadores, escritores e violeiros Paulo Freire e Cacai Nunes, que produziram esse álbum com gravações inéditas de Manelim e assim preservaram a sua herança.

Seu Manoel costumava dizer que aprendeu nove afinações de viola e a que ele mais tocava era a rio abaixo. E, também, que trabalhava na roça durante o dia e à noite ponteava no terreiro da sua casa os toques de viola, tais como o pica pau*, o rio abaixo**, o lagartixa, o papagaio, o lundu, o inhuma, o conselheiro, o cebolão, o São Sebastião, o São Gonçalo e as toadas de Reis.

Em 2006, Paulo Freire produziu Urucuia, primeiro disco com gravações de Manoel de Oliveira. E hoje ele traz novas gravações de Manelim para o álbum Deixa a Viola me Levar, que é, ainda segundo Freire, uma mostra de três fases distintas da vida do mestre e que não apenas capta o cerne da viola, no cenário do sertão mineiro, como também se revela uma coletânea da obra de Seu Manoel, falecido em janeiro de 2020.

São composições que, para além dos toques de viola, representam a relação do violeiro com a natureza através de músicas tradicionais, como folias de reis e a dança de São Gonçalo, num total de 17 faixas. Manoel de Oliveira, o Mestre Manelim, sabia tudo da sua viola de dez cordas.

Bem, ao ouvir o seu trabalho, é forçoso dizer que talvez ele estivesse condenado a ser um eterno desconhecido, não fosse a diligência de dois violeiros abnegados e do Selo Sesc para trazê-lo de volta à cena. Manelim vive!

A justificativa do trabalho de Freire e Nunes é a sua grande relevância cultural.  Entendo que só a cultura revela quem somos, de onde viemos e para onde vamos. E nos identifica muito mais do que CPFs e RGs, tornando-nos, aí sim, de fato, cidadãs e cidadãos deste país. Cultura é isso.

Aquiles Rique Reis

Nossos protetores nunca desistem de nós.

Ficha técnica:

direção artística e produção musical: Paulo Freire e Cacai Nunes; mixagem: Cacai Nunes; masterização: André Magalhães; texto: Paulo Freire; fotos: Cacai Nunes; produção executiva: Vai Ouvindo e Circus Produções Culturais; diretor de produção: Guto Ruocco.


* https://youtu.be/hvJTeQP9hXY?si=l-V2xhh25mLB319D

Pica Pau

**https://youtu.be/oIbR7QlaqYk?si=PutZe9mHtOiujfj9

Toque do Rio Abaixo