Por Kátia Maria Nunes Campos
O Antônio Dias guarda muita história antiga, mas que vai sendo esquecida, aos poucos. Não é sempre uma história gloriosa, de grandes acontecimentos ou personagens. Somente nós mesmos, gente comum, vida comum, como a de todos que nos cercam e que passam conosco, desaparecendo no tempo.
Um pouco acima da entrada da rua dos Paulistas havia um boteco modesto e de aspecto bem pobre, administrado por seu dono grandão, de pele negra reluzente, um personagem familiar na vizinhança. Na minha visão de criança, ele parecia enorme, mas não tinha nada de assustador. Era só o Chicão, só mais um habitante normal do bairro, conhecido e benquisto de todos.
Eu passava pela sua porta todos os dias, para cumprir algum mandado de compra da minha avó, na vendinha do Seu Joaquim, na garagem de D. Efigênia Stella, situado quase em frente um do outro. Era de outra natureza, de verduras, legumes e coisas de roça, incluindo linguiças e alguma pinga artesanal que talvez abastecessem o Chicão. Era onde se encomendava a galinha do molho pardo do domingo ou um bom fubá grosso. Gente modesta, ganhando a vida e servindo a um bairro igualmente modesto, como éramos todos.
De dia, poucos fregueses no XPTO, alguém comprando um doce ou um cigarrinho de palha. Ou só paravam por lá para um papo. À noite, tudo mudava. E o Chicão comandava a noite.
O ambiente, antes silencioso, se enchia de vozes e, vez ou outra, alguém tocava violão. A freguesia era a habitual de todos os dia. Entre eles, meu tio Vasco, Zé Pio, João Pulga e até João Pé de Rodo. Imagino que todos os etílicos boêmios amplamente conhecidos. Raramente acontecia de os ver, pois o horário não era para meninada bater perna. Depois de escurecer, criança só podia brincar no adro da igreja.
Quando a gente quebrava as regras e se aventurava para mais longe, na brincadeira de esconde esconde, subia a rua e dava a volta pela rua Detrás, passando em frente ao boteco, que nunca recebia reclamação de vizinhos. Tudo muito civilizado e bêbado arruaceiro e incômodo não tina vez.. Apesar da modéstia, o boteco do Chicão, não era qualquer boteco. Tinha lá o seu estilo e classe, assim como o próprio dono. Era estabelecimento renomado em Ouro Preto, um comodozinho apertado, com fama de tira gosto bem preparado e gostoso. E mais, um ambiente festivo, com serenatas e conversas animadas.
Ocasionalmente, vinha um certo freguês de longe, que sempre frequentava o XPTO, quando estava em Ouro Preto. Para ele, Chicão preparava um prato de arroz com ovo frito de gema mole ou um tropeiro no capricho, com muito torresmo. Depois, o tal freguês se juntava aos chorosos cantadores da noite, bebericando a cachacinha da terra. E se emocionava, cantando os doces versos de “A ti, flor do céu”, modinha mineira de mais de cem anos (que eu ainda sei de cor).
Todo Brasil conhecia e ainda se lembra do ocasional freguês do modesto boteco do Chicão. Ninguém menos que sua excelência, o ex-presidente do Brasil, Juscelino Kubistchek. Presença aceita sem estardalhaço, sem seguidores incômodos ou imprensa estraga-prazeres. Nada saía em jornal, diferente desta era opressora do facebook, que a todos vigia.
E JK era só mais um freguês de Chicão, apesar de ilustre.
Agora, todos se foram. Onde quer que estejam, meus respeitos ao Chicão e seus antigos fregueses e vizinhos, perdidos no tempo.
Êita, Antônio Dias amado, baú de história e de gente memorável…