Meu Deus! Esquecemos!


O brado ecoou nas coxias do Teatro Municipal. Início de julho de 1971. Noite de abertura do 5º Festival de Inverno, plateia lotada, daí a minutos entraria em cena o Grupo Experimental de Teatro de Ouro Preto (GETOP) para encenar “Ômega”, peça escrita por Osmar “Kelé” de Oliveira Jr. O autor do grito foi Júlio Varella, coordenador do Festival, que tinha sido avisado da presença de dois agentes do DOPS. Eram tempos do período mais truculento da ditadura militar e todos os espetáculos tinham de ser submetidos à censura prévia antes da estreia. Com o esquecimento, certamente a apresentação seria interrompida logo no seu início. Em meio à confusão nos bastidores, Sylvia Orthoff, diretora do curso de Teatro do Festival, pediu silêncio: “Preparem a entrada em cena. O resto é comigo.”. Dirigiu-se à boca de cena e ouvimos sua voz serena: “Senhoras e senhores, boa noite. Meu nome é Sylvia Orthoff e sou a diretora do curso de teatro do Festival de Inverno. Hoje estamos dando início a mais um dos nossos Festivais e, para fazer a sua abertura, convidamos um grupo de Ouro Preto para um ensaio geral de uma peça que estão montando. Repito: não se trata de uma apresentação pública, mas sim apenas do ensaio geral de um trabalho que desejam um dia transformar em espetáculo público. Obrigado e divirtam-se!”. Os “espias” não entenderam nada e, na dúvida, o espetáculo seguiu em frente e foi aplaudido de pé.


Ser convidado para abrir o maior festival de arte do país foi uma façanha inimaginável para um grupo desconhecido que teve a sua origem nas entranhas do próprio Festival. A história teve início dois anos antes por iniciativa de Júlio Varella, que viu no teatro a forma de garantir um espaço no Festival para os jovens da cidade. E o início não poderia ser melhor: uma montagem com acabamento profissional de “O Irmão das Almas” de Martins Pena, com atores ouro-pretanos dirigidos pelo americano Bennet Oberstein. Foi um mês intenso para todos nós, que mal tínhamos tempo de ir em casa para garantir às famílias que estávamos vivos.


Para completar o leque de epifanias, ainda convivemos com o pessoal do Teatro Oficina, comandado por José Celso Martinez Corrêia, que trouxe a Ouro Preto a sua versão de “Galileu Galilei” de Bertold Brecht. Trago viva na memória o momento em que José Celso, durante um de nossos ensaios, entrou no Teatro para avaliar o ambiente. Sentou-se na platéia, contemplou o palco e, de repente, levantou-se e ordenou ao atônito pessoal da carpintaria: “Tirem tudo!”. Para espanto geral, o palco ampliado se transformou numa sala medieval emoldurada por dois grandes janelões (sempre ocultos, jamais valorizados como objetos de cena). Ali se desenvolveu o espetáculo que ainda usou os balcões laterais para malabarismos dos atores.


Aquela explosão de criatividade nos estimulou a propor aos organizadores a apresentação do esquete “Apologia” de José Carlos Caiafa Junior, que foi dirigida por Geraldo Maia, do Teatro Universitário da UFMG; os atores foram: Antônio Mendes Barros, José Carlos Caiafa Jr., Maria Aparecida Vasconcelos Paiva, Maria Cristina Rodrigues, Sílvia Maria Gonçalves e Victor Vieira de Godoy. No programa, recebemos o pomposo nome de “Grupo de Ouro Preto do Curso Experimental de Teatro do 3º Festival de Inverno”.
A partir daí, já como “Grupo Experimental de Teatro de Ouro Preto”, a “troupe” foi estimulada a persistir com um convite também inesperado. Interessados em reativar o “Teatro do Doze”, os organizadores das festividades comemorativas do aniversário da Escola de Minas fizeram um convite para a encenação de uma versão ampliada de “Apologia” em ritmo de teatro de revistas, mantendo o tom de críticas bem-humoradas das atividades acadêmicas. Mais um sucesso do grupo, já ampliado com a escalação que seria a base das futuras montagens do GETOP. O texto de Caiafa foi dirigido por Kelé e Geraldo Maia e os atores foram: Antônio Mendes Barros, Geraldo “Mengálvio” Passos, Jane Athayde, João Batista “Tatu” Pena, José Carlos Caiafa Jr., Mará Mendes Barros, Maria Aparecida Vasconcelos Paiva, Maria Cristina Rodrigues, Maria do Carmo Vasconcelos Paiva, Sílvia Maria Gonçalves e Victor Vieira de Godoy. A música foi composta por Carlos Alberto “Dandão” Balthazar e interpretada pelos atores e um coro formado por: Armando Lacerda (violão), Carlos Alberto (violão), Jackson, Joana Mendes Barros, Maria Zélia Trindade e Maria Raimunda. O contrarregra foi José Emídio Teixeira, o cenário e o cartaz de Jair Carvalho Filho, a iluminação de Luís Almeida, a figurinista Mará Mendes Barros, a costureira Maria da Conceição “TemTem” Maluf Barros, a maquiagem de Joana Mendes Barros, o maquinista Orlando Ramos Filho e o eletricista Leonildo.


Nos anos seguintes o GETOP manteve a chama acesa com os espetáculos “São seis horas, paro e penso!”, “Ômega” e “A roupa nova do rei”, além de participar de “Cirandas de Vila Rica” na escadaria da Igreja do Carmo. Sempre aberto às novas tendências de encenação, a originalidade de suas montagens atraiu a colaboração de expoentes do teatro nacional como Sylvia Orthoff, Geraldo Maia, José Antônio de Souza e Amir Haddad. No primeiro semestre de 1971, o grupo de vanguarda nova-iorquino “Living Theatre” veio a Ouro Preto para a montagem de “A Herança de Caim”, espetáculo que deveria estrear no Festival de Inverno. Hospedado inicialmente da República Pulgatório, sede informal do GETOP, logo os atores ouro-pretanos foram incorporados às oficinas comandadas por Julian Beck e Judith Malina. Repentinamente, tudo foi interrompido pela repressão política e virou história, que é matéria para outra conversa (que bem poderia ser chamada de “GETOP: A Via-Sacra através do Pulgatório”).


Em 2021, em plena pandemia, espalhados pelo país, lamentávamos a impossibilidade de estar juntos em Ouro Preto para subir ao palco de nosso “Teatrinho”, 50 anos depois, para gritar a plenos pulmões o ritual dos atores no início dos espetáculos: “MERDA!”. Desta vez isto teria duplo significado: saudade de nossa linda juventude e protesto contra os que tentavam nos conduzir de volta aos anos de chumbo. Estes, não passarão. Nós, passarinhos de Mário Quintana.

Ouro Preto, julho de 2023.