A Justiça do Reino Unido rejeitou hoje (9) o prosseguimento da ação movida por milhares de atingidos pelo rompimento de uma barragem de rejeitos em 2015 no município mineiro de Mariana. Na ação, eles buscavam uma indenização da BHP Billiton, mineradora anglo-australiana com sede em Londres. A empresa estrangeira e a Vale são as duas acionistas da Samarco, causadora da tragédia.

O rompimento da barragem, que completou cinco anos na semana passada, liberou no ambiente 39 milhões de metros cúbicos de lama. A onda de rejeitos causou 19 mortes, destruiu comunidades e levou poluição a dezenas de cidades da bacia do Rio Doce até a foz no Espírito Santo. A ação do Reino Unido foi movida por pouco mais de 200 mil atingidos, três comunidades indígenas, aproximadamente 600 empresas e 25 municípios, além da Arquidiocese de Mariana. Eles foram representados pelo escritório inglês PGMBM Law.

O pleito, no entanto, foi considerado “abuso de processo” pelo juiz Mark Turner, do Tribunal Cível de Manchester, onde tramita a ação. Turner entendeu haver risco de sentenças inconciliáveis, com julgamentos simultâneos no Brasil e no Reino Unido. “Pode-se prever com segurança que essa contaminação cruzada incessante dos procedimentos levaria ao caos absoluto na condução dos litígios em ambas as jurisdições, sendo que a posição processual de cada uma delas estaria em um estado de fluxo quase constante.”

Segundo Turner, cerca de 20 mil pessoas atingidas admitiram que seus casos foram resolvidos no Brasil. Esse número representa 10% do total de reclamantes no processo movido no Reino Unido. Para o juiz, a Samarco reconheceu a posição de poluidora direta, a Justiça brasileira vem se debruçando sobre o caso, e indenizações têm sido pagas pela Fundação Renova, criada para gerir as medidas de reparação.

Turner considerou ainda as despesas para a Justiça do Reino Unido. “Ações envolvendo um número muito considerável de partes e questões inevitavelmente colocam um ônus sobre o tribunal que pode ser muito maior do que aquele que seria assumido no contexto de uma ação unitária. Assim, as considerações sobre a alocação de recursos judiciais e a viabilidade processual de acomodar as ambições das partes são susceptíveis de entrar em jogo com mais força.”

O tempo exigido para o julgamento também foi colocado em questão, bem como as barreiras linguísticas, uma vez que muitos reclamantes e testemunhas têm o português como único idioma. “Os procedimentos seriam inevitavelmente e muito significativamente prolongados e tornados mais caros pela necessidade do amplo envolvimento de intérpretes. Além disso, não há dúvida de que o litígio na Inglaterra exigiria a tradução de uma quantidade muito considerável de documentos do português para o inglês. Os custos da tradução seriam muito altos e os atrasos gerados, significativos”, disse o juiz.

Mark Turner chega a citar o risco de se criar “o maior elefante branco na história das ações coletivas” e põe em dúvida a capacidade da Justiça do Reino Unido de julgar a tragédia. “Independentemente do nível dos problemas que supostamente enfrentariam os demandantes no Brasil, estes não serão amenizados pela abertura de uma segunda frente na Inglaterra, onde qualquer processo seria caro, quase interminável, sem foco, imprevisível e incontrolável”, acrescentou.

O escritório PGMBM Law informou que vai recorrer e se apega a diversos precedentes, nos quais a Justiça do Reino Unido admitiu processos que pleiteavam indenização por danos ocorridos em outros países. Em abril do ano passado, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu que cerca de 1,8 mil habitantes de uma aldeia da Zâmbia poderiam processar a mineradora Vedanta nos tribunais ingleses.

“A artimanha jurídica da BHP, tanto na Inglaterra como no Brasil, resultou em um julgamento fundamentalmente falho, do qual pretendemos recorrer imediatamente. Elementos dessa decisão não têm fundamento próprio nem no direito inglês, nem no europeu. Tanto que estamos confiantes de que ela será reformada”, afirmou o advogado Tom Goodhead, em comunicado divulgado pelo escritório.

O processo vinha tramitando desde 2018. Os advogados das atingidos asseguram ter provas suficientes sobre a dificuldade de se obter a reparação no Brasil. Em novembro do ano passado, a BHP Billiton contestou a competência de jurisdição de tribunais ingleses para seguir com o caso. A empresa sustentou que a Justiça brasileira tem meios satisfatórios para assegurar a reparação dos danos. Em julho deste ano, ao longo de uma semana, os advogados das duas partes puderam apresentar no tribunal inglês considerações sobre o conflito de competência, que foram avaliadas e julgadas na decisão do juiz Mark Turner.

Processos no Brasil

Para reparar os danos da tragédia, um termo de transação e ajustamento de conduta (TTAC) foi firmado em março de 2016 entre a Samarco, a Vale, a BHP Billiton, o governo federal e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. A partir daí, foi criada a Fundação Renova para adotar todas as medidas necessárias. A atuação da entidade tem sido questionada judicialmente pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que apontam falta de autonomia e alegam que, em última instância, as mineradoras controlam o processo reparatório.

Passados cinco anos da tragédia, a Fundação Renova informa que os gastos com medidas de reparação se aproximam de R$12 bilhões. As comissões de atingidos registram, no entanto, que centenas de famílias atingidas que rejeitaram as ofertas não conseguiram ainda receber indenização e que há ainda vítimas que sequer foram reconhecidas.

Além disso, reclamam que obras para reassentamento dos desabrigados estão atrasadas. Os moradores dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, que foram arrasados, até hoje moram em casas alugadas pela Samarco e esperam a reconstrução das comunidades, que deveriam ter sido entregues no ano passado, conforme o cronograma original.

Nas negociações do TTAC, os envolvidos estimaram em R$20 bilhões os prejuízos causados pela tragédia. Questionado pelo MPF, esse acordo até hoje não foi integralmente homologado, embora tenha orientado a ação das mineradoras e da Fundação Renova. Ao mesmo tempo, uma ação civil pública foi movida em 2016 por procuradores do MPF, que estimaram os danos em R$155 bilhões.

Esse processo, que estava suspenso desde agosto de 2018 para uma tentativa de repactuação das medidas de reparação, pode voltar a tramitar. As negociações entre o MPF e as mineradoras não foram bem-sucedidas, e um acordo final não foi obtido. Em setembro desse ano, os procuradores pediram a retomada do andamento processual.

O MPF também tenta anular decisões do juiz federal Mário de Paula Franco Júnior que recentemente asseguraram indenizações que variam entre R$ 23 mil e R$ 93 mil a atingidos de Naque (MG) e Baixo Guandu (ES). Essas sentenças inclusive influenciaram a avaliação da Justiça do Reino Unido. O magistrado inglês Mark Turner fez menções diretas ao nome do juiz Mário de Paula Franco Júnior.

Para os procuradores do MPF, o magistrado brasileiro colocou em sigilo uma ação movida por comissões de atingidos ilegítimas e, ao fixar valores baixos de indenização, prejudicou a coletividade. “Desse sigilo decorreu o fato mais grave da decisão judicial, que foi a ausência de prévia intimação do Ministério Público Federal para atuar, como fiscal da lei, numa causa que envolve direitos coletivos, conforme obriga a Constituição Federal”, diz nota do MPF.

Por Léo Rodrigues – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro Edição: Nádia Franco

Foto: Antônio Cruz