Por Marcelo Santos de Abreu
Professor do Departamento de História, da Universidade Federal de Ouro Preto
Hoje, comemoramos o bicentenário da Independência. Como em 1972 ou 1922, o Estado republicano apela a um sentido do que é comemorar. Dizem, convocando a etimologia, que o verbo significa lembrar em conjunto. Têm razão. Mas a pergunta hoje será: é possível realizar essa intenção com as mesmas personagens, eventos e imagens que se tornaram memoráveis no século XIX e ainda duram até hoje?
O Sete de Setembro é uma invenção com uma história longa, iniciada logo depois do evento. E o seu significado já era disputado: teria sido um ato de vontade do príncipe ou esse acompanhava apenas o clamor pela emancipação? Além disso, lembremos que, no momento do grito, não se sabia realmente se de fato vingaria. Ainda nos anos 1820, outras datas apareceriam. O 12 de outubro, dia da aclamação de D. Pedro I, marcaria a real fundação do Império brasileiro, deslocando o 7 de setembro como data a ser lembrada. O 3 de maio, para os mais exaltados, deveria ser também lembrado por ser a data de início da Assembléia Constituinte, ou seja, evento que de fato marca a soberania do povo. Para outros, mais conservadores, melhor seria ficar com a fundação do Império. Depois da abdicação de 1831, o 7 de abril seria incluído como festa nacional. Nas décadas de 1850 e 1860, a celebração do 7 de setembro ganhou força por iniciativa de associações patrióticas. Enquanto essas duraram, a comemoração teve maior visibilidade. Mais ou menos ao mesmo tempo em que essas disputas aconteciam, o 2 de julho de 1823 também entrava na disputa. A data da expulsão dos portugueses de Salvador não teria importância regional apenas, mas poderia ser uma data nacional realmente a mostrar como o processo de emancipação foi diverso e mais complexo. Outro evento comemorativo mostra a relatividade da data: o monumento erguido em homenagem a D. Pedro I, foi inaugurado em 30 de março de 1862, e não no dia em que se celebraram os quarenta anos da emancipação. No século XIX, portanto, a historiografia canônica da Independência foi-se firmando, mas sua celebração pública encontrava alguma dificuldade.
O impulso para garantir a data na “folhinha” viria com o centenário em 1922. Essa iniciativa seria reforçada durante o Estado Novo, quando se organizou primeiramente o que conhecemos como Semana da Pátria. A celebração estabelecida durante a ditadura Vargas ficaria para a história. Ao longo da ditadura militar, a semana e o 7 de setembro se espraiaram, envolvendo as instituições militares e escolas nos desfiles cívicos. A comemoração do sesquicentenário teve de fato um caráter espetacular que culminou com o enterramento dos restos de D. Pedro I no Monumento à Independência em São Paulo. Todos os passos do sesquicentenário ganharam grande visibilidade, integrando-se às formas de legitimação simbólica da ditadura em seu momento mais violento. Ouvimos alguns ecos disso atualmente, como o uso político explicito da comemoração ou a visita do coração do monarca emulando o traslado de seu corpo em 1972.
Diante disso, outras perguntas se impõem: a vida e morte de D. Pedro I de fato resumem e simbolizam a independência? É possível supor que uma história tão diversa nesses 200 anos possa ser comemorada com tamanha redução? Tudo me faz crer que não.
Foto:José Cruz/Agência Brasil